Dia Mundial da Água

No Cerrado, "piscinões" drenam o fluxo dos rios

Levantamento do MapBiomas mostra que agricultura e pecuária consomem a maior parte do recurso e deixam comunidades à míngua

Planta típica do Cerrado. -  (crédito: Joédson Alves/Agência Brasil)
Planta típica do Cerrado. - (crédito: Joédson Alves/Agência Brasil)

Fernanda Ghazali*

No Dia Mundial da Água, celebrado hoje, a devastação do Cerrado acende um alerta sobre a crise hídrica enfrentada pelo país. O bioma, conhecido como o berço das águas do Brasil, é responsável pela nascente de oito das principais bacias hidrográficas do país, mas perde espaço a cada ano para o avanço de plantações em extensas faixas de terras e para a pecuária. De acordo com o MapBiomas, um fenômeno preocupante é o aumento dos chamados "piscinões" — reservatórios artificiais que desviam a água dos rios para abastecer fazendas e diminui o fluxo dos rios e afeta comunidades tradicionais que dependem desses recursos.

Dados do MapBiomas mostram que a água antrópica (alterada pela ação humana) no país cresceu 54% em relação a 1985 — 1,5 milhão de hectares a mais. A maior parte da superfície dessa água fica em biomas densamente habitados, como a Mata Atlântica (1,33 milhão de hectares) e Cerrado (984 mil hectares) — bioma que abriga 80% dos pivôs centrais de irrigação do Brasil, o que faz com que metade da água captada seja destinada à manutenção de plantações.

Além disso, medição do MapBiomas feita até o ano ado mostra a tendência de redução da superfície de água — algo que já havia sido registrado em anos anteriores. Os 17,9 milhões de hectares do território do país cobertos por água, em 2024, são 2% menores que os 18,3 milhões verificados em 2023 — e ficam 4% abaixo da média da série histórica, iniciada em 1985. Desde 2009 observa-se tendência de queda e, de lá até o ano ado, apenas em 2022 registrou-se aumento da superfície de água. Oito dos 10 anos mais secos de toda a série ocorreram na última década.

No caso do Cerrado, 50% da vegetação original está devastada pelo avanço do cultivo da soja e da pecuária em larga escala, que compromete os recursos hídricos e ameaça o modo de vida de povos tradicionais. Ainda segundo o MapBiomas, levantamento da série histórica entre 1985 e 2023 mostra uma redução da vegetação nativa no Cerrado de 139 mil hectares para 101 mil hectares.

Mapa Cerrado
Mapa Cerrado (foto: MapBioma)

Comunidades sofrem

Entre as comunidades que resistem ao desvio da água para o plantio e a pecuária estão os fecheiros, povos tradicionais do Cerrado baiano que, há séculos, preservam a vegetação nativa e fazem da conservação ambiental um modo de vida. Eldo Barreto, liderança comunitária em Correntina, no oeste da Bahia, vive essa luta diariamente.

"Aqui onde moro a um rio. Esse rio deságua no Rio Corrente, que deságua no Rio São Francisco. Essa água que nasce aqui serve para saciar a sede de mais de 13 milhões de pessoas", afirma.

Mas isso está ameaçado. Comunidades como a de Eldo sofrem com a escassez hídrica causada pela irrigação intensiva do agronegócio, além da contaminação dos rios por agrotóxicos. Segundo ele, dos territórios coletivos que as comunidades usavam há décadas, restaram apenas 3%.

"Noventa e sete por cento desse território foi apropriado pelas grandes fazendas e corporações. Esse pouco que nos sobrou é palco de conflito, dia após dia. A pressão das multinacionais para desmatar e extrair água do subsolo é imensa. Já tivemos rios que secaram, barragens de veneno em fazendas que romperam e poluíram nossos rios por semanas", denuncia.

A crise enfrentada pela comunidade de Eldo não é um caso isolado. O Cerrado é, hoje, o bioma brasileiro que mais sofre com o desmatamento. A região do Matopiba — que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia — é considerada a última fronteira agrícola do país e o principal foco de avanço do cultivo em áreas extensas. Especialistas alertam que a substituição da vegetação nativa por monoculturas está alterando drasticamente o ciclo da água.

"A impermeabilização do solo impede que a água da chuva infiltre e alimente os lençóis freáticos. Em vez disso, ela escoa rapidamente, causando enchentes", explica Helga Correa, especialista em conservação do WWF-Brasil.

Eldo e sua comunidade adotam princípios para o uso sustentável da terra: criam gado solto no pasto nativo, produzem mel e cultivam pequenas lavouras sem degradar a vegetação. "Uma área de 50 mil hectares das nossas comunidades mantém 72 nascentes de água", ressalta.

*Estagiária sob a supervisão de Fabio Grecchi


Correio Braziliense
postado em 22/03/2025 03:55
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