
A arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon, considerada um dos nomes mais importantes da ciência brasileira, morreu vítima de infarto, ontem, aos 92 anos, em São Raimundo Nonato, no sertão do Piauí. A morte encerra uma trajetória marcada por ousadia científica, resistência institucional e transformação social.
Foi ali que Niède reescreveu a história da presença humana nas Américas e deu início a uma revolução silenciosa que mudaria também a vida de centenas de nordestinos. O sepultamento acontece hoje. Ela será enterrada no quintal da própria casa, um pedido que ela deixou.
O Parque Nacional da Serra da Capivara, criado por seu esforço, abriga mais de mil sítios arqueológicos catalogados, dos quais mais de 200 estão abertos à visitação, e 17 possuem ibilidade, levando direto para as pinturas rupestres. Dois museus fazem parte do projeto criado pela pesquisadora, além de um centro cultural. Pinturas rupestres datadas de até 48 mil anos fazem parte do acervo. O parque ocupa 130 mil hectares com mais de 400 quilômetros de estrada.
Nascida em Jaú, no interior de São Paulo, em 12 de março de 1933, Niède era filha de pai francês e mãe brasileira. Formou-se em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) em 1959. Completou sua especialização na Universidade Paris-Sorbonne, com doutorado e pós-doutorado com uma tese dedicada às pinturas rupestres do Piauí.
Nos anos 1970, ela ouviu pela primeira vez sobre registros pré-históricos no sertão piauiense. Trabalhando como assistente da arqueóloga sa Anette Emperaire, no Centre National de La Recherche Scientifique, insistiu para que sua equipe fosse para o sul do Piauí. Ao ver de perto os painéis pré-históricos da região, decidiu fixar-se em São Raimundo Nonato, onde permaneceu até seu último dia de vida.
Ela entrou para a história ao propor uma hipótese de que a presença humana nas Américas era anterior ao que sustentava a teoria dominante — a da travessia pelo Estreito de Bering, há cerca de 13 mil anos. A partir das descobertas em sítios como o Boqueirão da Pedra Furada, ela apontou vestígios de fogueiras de 48 mil anos, pinturas com 35 mil anos e ossadas humanas de mais de 15 mil anos.
Reconhecimento
Ao longo de uma trajetória de mais de seis décadas dedicadas à arqueologia, à ciência e ao desenvolvimento humano no semiárido nordestino, Niède Guidon foi amplamente reconhecida no Brasil e no exterior. Suas descobertas arqueológicas na Serra da Capivara e seu empenho em transformar a região de São Raimundo Nonato em um polo internacional de pesquisa lhe trouxeram reconhecimento nas áreas científica, cultural e humanitária.
Entre as principais láureas, destaca-se o Prêmio Almirante Álvaro Alberto de 2024, concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e pela Marinha do Brasil. Trata-se da mais alta honraria científica do país, oferecida anualmente a pesquisadores que tenham contribuído de forma decisiva para o avanço da ciência e da tecnologia nacional.
Niède também foi agraciada com o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), em julho de 2024. A homenagem foi uma forma de reconhecer o impacto transformador de suas pesquisas para o conhecimento da pré-história americana e para o desenvolvimento regional do Piauí. Ao agradecer, ela disse: "É uma gentileza imensa receber este reconhecimento pelo meu trabalho, mas quem realmente merece isso é o homem pré-histórico, que deixou esse patrimônio fantástico na região da Serra da Capivara".
No Brasil, recebeu também o Prêmio Fundação Conrado Wessel de Cultura, um dos mais importantes da área cultural e científica do país, e com o Prêmio Cientista do Ano, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que reconhece contribuições de excelência em pesquisas de impacto social.
Entre os reconhecimentos internacionais, destaca-se o Prêmio Príncipe Claus, concedido pelo governo da Holanda, que celebra personalidades de destaque na cultura e no desenvolvimento social. Niède também recebeu o Green Prize, da organização pacifista e ecológica Paliber, por seu compromisso com a preservação ambiental e cultural.
A arqueóloga também foi condecorada com a Ordem Nacional do Mérito Científico, na categoria Grã-Cruz, a mais alta distinção da comenda outorgada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação a personalidades que tenham prestado relevantes serviços ao progresso da ciência brasileira. Em 1996, Niède foi homenageada pela escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, que levou à Marquês de Sapucaí o samba-enredo Aurora do povo brasileiro, dedicado à pré-história nacional, às descobertas arqueológicas do Piauí e ao trabalho da cientista paulista.
O prestígio da pesquisadora também foi reconhecido pelo governo francês, que a nomeou Chevalier de La Légion d'Honneur, a mais tradicional e elevada condecoração da França, concedida a pessoas que se destacam por serviços prestados à cultura, à ciência e à humanidade. Mais recentemente, em 2024, uma nova espécie de ave, descoberta no entorno do parque que ajudou a criar, foi batizada em sua homenagem. O pequeno pássaro de canto lento e persistente foi denominado de Sakesphoroides niedeguidonae, que ou a simbolizar a resistência e a permanência do legado da cientista no sertão piauiense.
Desenvolvimento social
Um dos maiores conhecedores do trabalho de Niède Guidon, o fotojornalista André Pessoa, pernambucano radicado no Piauí há mais de 30 anos, conviveu de perto com a arqueóloga e acompanhou, com sua câmera e sensibilidade, o nascimento de um dos maiores projetos científicos e sociais do Brasil. Atualmente, prepara o lançamento do livro "Serra da Capivara: a milenar arte rupestre brasileira", obra que reúne registros visuais e reflexões sobre as descobertas da arqueóloga em São Raimundo Nonato. "Minha ideia era lançar o livro como uma homenagem em vida mas, infelizmente, não deu tempo", lamenta.
Pessoa relembrou o impacto da cientista na região, contando que o trabalho de Niède ultraou as pesquisas científicas."Ela inverteu o tradicional, transformou a ciência, a pesquisa, numa fonte de desenvolvimento sustentável. Gerou para a população local uma forma de sobrevivência. De eles ganharem seu dinheiro de forma digna e sustentável. Ela se preocupava em transformar e preservar a região e para isso era preciso contar com o apoio da população local, que precisava trabalhar, sem destruir a natureza", contou.
Uma das ações mais simbólicas dessa transformação foi a contratação exclusivamente feminina para as guaritas do parque. "Ela percebeu que precisava dar emprego para elas, pois eram mais responsáveis no controle financeiro do que os homens da região. Ela empoderou, dando trabalho digno", contou. O jornalista revelou ainda que Niède também fomentou projetos de apicultura, capacitação de jovens guias e incentivou a produção de uma cerâmica típica da Serra da Capivara. A articulação para captar recursos internacionais, como os do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), permitiu que a pesquisadora implantasse iniciativas de base comunitária sólidas. "Ela gerou alicerces", afirmou Pessoa.
Além da ciência e da gestão ambiental, Niède Guidon criou, nos anos 1990, três Núcleos de Apoio às Comunidades (NACs), escolas instaladas nas zonas periféricas do parque, que ofereciam ensino fundamental, cursos de idiomas e atendimento odontológico. Mas com uma reforma educacional, à época, as verbas aram a ser destinadas à prefeitura que acabou fechando os núcleos. "Ela pagava melhor que o piso praticado. E discordava da postura dos políticos locais. Com isso, seu projeto não teve continuidade", relembra o jornalista.
Sobre a morte, o jornalista e irador da obra da arqueóloga Niède Guidon, disse que apesar dela já está afastada das atividades há alguns anos, a perda é irreparável, pois ela não só transformou a pesquisa científica no país, mas mudou uma região esquecida e com poucas chances de visibilidade e atenção dos governos. "Ela era uma cientista preocupada com a melhoria da comunidade local. Transformou a comunidade, o que poucos cientistas no mundo fazem. Tornou a região autossuficiente. Ela fez com que toda população mudasse de vida. Antes de pesquisadora, ela foi humana. Se preocupava com o povo", disse Pessoa, finalizando: "Ela treinou os pais, os jovens, os moradores. A arqueologia virou base para educação, dignidade e futuro".
Nas redes sociais, o Parque Nacional da Serra da Capivara lamentou o falecimento. "Sua trajetória deixa um legado imensurável para a ciência, a cultura e a memória do nosso país. Seu nome está eternamente gravado na história." A Universidade Federal do Piauí (UFPI) também divulgou nota de pesar. "Niède Guidon deixa um legado de compromisso com a ciência, com a valorização da memória ancestral e com o desenvolvimento social e cultural do Semiárido piauiense. Sua contribuição continuará inspirando gerações de pesquisadores", afirmou a instituição.