
Meu primeiro endereço no Distrito Federal, onde vivo há exatos 22 anos, foi Ceilândia, que, nesta semana, comemorou 54º aniversário. Em 15 de março de 2003, por volta das sete da manhã, desembarquei na antiga Rodoferroviária, peguei a Via Estrutural e segui diretamente para aquele que foi o meu primeiro porto seguro na cidade que se tornaria o meu novo lar. Por três meses, pude saborear a miscelânea de sotaques (uma mistura de nordestino, mineiro e goiano) em torno da caixa d`água que serve de símbolo-mor da cidade. Também fui atravessado pelo frenesi de pessoas e veículos que circulam pela Avenida Hélio Prates e pelo comércio que se mantém pulsante entre lojas de rua e feiras. E, principalmente, ouvi instigantes histórias de quando o local era tomado por poeira, lama e barracos de madeira.
Confesso que o meu lado romântico adoraria ter conhecido a Ceilândia raiz. Minha primeira experiência em Brasília foi 19 anos antes, quando minha avó, Laura, veio visitar a irmã, Lia, que morava na então cidade-satélite. Eu tinha apenas 4 anos, mas a única lembrança que eu consigo ar desse longínquo 1984 é de uma cisterna no quintal da casa — além de um retrato bem distante do Congresso Nacional visto da Rodoviária do Plano Piloto (que era, em 1984, o ponto de embarque e desembarque interestadual do Distrito Federal). Os dois lados da família Selvatti não se viam desde então, mas esse não foi um empecilho para que eu fosse acolhido pelos meus parentes radicados na nova capital desde a época da construção.
Meu tio-avô, João Roquini, que era cunhado e primo-irmão da minha avó, foi um legítimo candango. Assim como centenas de brasileiros, o descendente direto de italianos vislumbrou na nova capital do país a oportunidade e fixou morada no chão terroso da cidade que se formou por meio da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI). Fui ter uma luz um pouco menos difusa sobre essa história quando assisti às minisséries JK, exibida pela Globo em 2006, e Mil dias — A saga da construção de Brasília, na History Chanel, em 2018.
Quando criança, eu escutava minha mãe comentar sobre os parentes que visitamos em Ceilândia, mas eu não compreendia nada sobre o que era Brasília. Honestamente, as referências que eu tive, já na adolescência, se resumiam às músicas da Legião Urbana. E foram elas que despertaram em mim, adulto, a paixão que me levou a fincar meus pés nessa terra e usar toda essa atmosfera histórica vibrante como matéria-prima do meu primeiro e único livro, publicado em 2008: o romance Os filhos da revolução, que reúne ficção e realidade em meio aos anos 1980 na capital federal.
É curioso que o dia em que Ceilândia celebra nova idade também seja o aniversário do saudoso Renato Russo, a mente genial que, poeticamente, propagou nuances de Brasília que os noticiários da tevê não nos mostravam. Menos de uma década após a sua morte, a sua obra seguia viva e pulsando Músicas como Eduardo e Mônica e Faroeste caboclo despertaram minha curiosidade sobre a UnB, a Asa Norte, o Parque da Cidade, Taguatinga e "Ceilândia, em frente ao Lote 14". E foram exatamente esses os locais que eu me dispus logo a conhecer, assim que cheguei por aqui.
De todos os lugares emblemáticos, eu talvez não tenha visitado o tal Lote 14 de Ceilândia. Pelo menos não necessariamente o que serviu de ponto de encontro para o duelo lendário de João de Santo Cristo com Jeremias. Mas, embora haja o senso comum de que esse endereço nunca existiu, qualquer casa, loja ou prédio na maior região istrativa do DF que tenha como número o 14 pode ser uma edificação instalada no icônico espaço. Então, na minha cabeça, até o Lote 14 eu conheci.
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