
Na primeira vez em que vi o Plano Piloto eu devia ter uns 7 anos. Na época, colecionava gibis. Meu pai me levou até a Esplanada dos Ministérios e, quando divisei os edifícios de brancura espectral, a impressão que tive foi de avistar uma cidade das historietas de Flash Gordon, envolvida nas nuvens de poeira. A espacialidade me causou fascínio e angústia. Os prédios pareciam próximos, mas estavam longe.
Sem saber, talvez tenha feito um percurso clássico da maioria das pessoas em relação à cidade. Reza a lenda que Brasília sofre da síndrome de três dês. O primeiro é o do desespero, ao se deparar com a imensidão do espaço, a ausência de esquinas e a perda de referências das cidades tradicionais.
O segundo é o deslumbramento de constatar que, ado o estranhamento, ao viver a cidade cotidianamente, ela vai revelando suas qualidades. É uma cidade-parque, pontilhada de jardins, árvores, pássaros e luminosidade. Respira-se ar puro. A escala monumental irradia a beleza dos monumentos em interação com as nuvens em mutação. Mas o aprofundamento da vivência leva ao terceiro estágio, o do desencanto. Os desmandos de governos que complicam a cidade. O desencanto é benéfico, pois leva a uma visão mais realista.
Muito tempo depois dessa primeira visão, sinto que marquei e deixei-me marcar pela cidade. Alguns sentem falta do fervilhamento de outras cidades, em que se esbarra a todo momento em outras pessoas. De minha parte, eu dispenso essa situação. Morei em São Paulo, durante quatro anos, esbarrava nas pessoas e nunca me senti tão solitário. Eu gosto da contemplação do silêncio visual de Brasília.
A minha relação com Brasília sempre foi mediada pela arte. "Sobre a cabeça os aviões/Sob os meus pés os caminhões/Aponta contra os chapadões/Meu nariz". Eu tinha 13 anos quando ouvi, pelo rádio, em São Paulo, a canção-manifesto Tropicália, de Caetano Veloso. Ela caía como um objeto não identificado sobre a minha cabeça. Eu estava acostumado a ouvir canções que narravam uma historinha, com começo, meio e fim.
Com sua letra estilhaçada e seu arranjo épico, Tropicália explodia com o modelo convencional de narrativa e me deixava perdido, sem entender nada, sem lenço e sem documento. Mas, estranhamente, ao mesmo tempo, eu tinha a sensação de que algo me era familiar. Na terceira vez em que ouvi Tropicália, identifiquei o que me era familiar e encontrei uma brecha e uma chave para entrar na canção de Caetano: Brasília.
Quem não gosta de arte não gosta de Brasília, porque ela é uma cidade criada por artistas e por um presidente com alma de artista. E isso está inscrito na estrutura da cidade. Brasília é uma utopia cultural. A beleza de Brasília não é uma qualquer para decorar, enfeitar ou compor um cenário para o poder. Não é mero cenário para um faroeste caboclo. A minha Brasília é uma cidade que Lucio Costa pousou no Cerrado com a sabedoria de um arquiteto do cosmos, nas palavras do poeta Francisco Alvim.
Foi Lucio Costa que nos colocou pertinho do céu. E, por isso, não são apenas os monumentos de Niemeyer que precisam ser preservados, mas também a escala bucólica, os vazios, vazados e a espacialidade. É um equilíbrio delicado que pode ser quebrado por intervenções desastradas, sob o risco de apagar o céu.
O Correio organizou uma exposição, em cartaz na Casa de Chá, com 42 fotos de momentos em que Brasília se encontrou para chorar a morte de Tancredo Neves, para se despedir de Juscelino Kubistchek, para celebrar o título de campeão mundial de 2002, para extasiar-se com o Concerto Cabeças no Parque da Cidade, para fazer uma pedalada coletiva no Eixão do Lazer ou para pedir paz no trânsito.
É comovente ver um mar de brasilienses mobilizados para as pequenas e as grandes utopias. Apesar de todas as desinteligências e dos acidentes da história, eu ousaria dizer, parafraseando Lucio Costa, contra todas as evidências, que Brasília não tem vocação para a distopia.
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Severino Francisco
Subeditor do caderno de cultura e cronistaJornalista desde 1979, atuou como repórter, editor, articulista, crítico cultural e cronista no Jornal de Brasília e no Correio Brasiliense. Lecionou jornalismo no UniCEUB. É autor, entre outros, de Da poeira a eletricidade , história da música de