
O Cerrado, também conhecido como savana brasileira, é o segundo maior bioma do Brasil. Presente em 14 estados, incluindo o Distrito Federal, possui uma extensa biodiversidade de fauna e de flora que, muitas vezes, não é explorada. Entre as suas riquezas estão alimentos que antigamente eram cultivados por povos originários e tiveram forte presença nos costumes alimentares de famílias por gerações. As plantas alimentícias não convencionais (PANCs) chamam a atenção de consumidores e de pequenos agricultores, que viram nelas uma possibilidade de negócio.
As PANCs vêm ganhando notoriedade na capital federal. Muitas vezes, elas são encontradas em praças, cercas-vivas e até mesmo ao lado de calçadas. Os entusiastas dessas iguarias são atraídos pelo sabor marcante, resistência a pragas, fácil cultivo e diversidade de usos, pois podem servir como remédio e contribuem para a preservação ambiental, trabalhando na recuperação do solo.
As PANCs, definidas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) como hortaliças tradicionais, podem ser encontradas em todo o território nacional. No Cerrado, estima-se que existam cerca de 351 espécies, entre elas, o pequi (Caryocar brasiliense), o baru (Dipteryx alata), o buriti (Mauritia flexuosa), o ora-pro-nóbis e o ipê-amarelo, cujas flores podem ser consumidas cruas, em saladas, ou cozidas.
Pesquisador da Embrapa Hortaliças, Nuno Madeira explica que as PANCs são uma opção viável para garantir a segurança alimentar. "São plantas muito íveis e extremamente importantes por conta da rusticidade, resistência e facilidade de cultivo. Você pode tê-las em quintais, em escolas e em praças, entre outros. Por exemplo, você pode substituir as tradicionais alface e couve por algumas PANCs, como taioba e chaya, que são ricas em nutrientes e mais fáceis de produzir", ressalta.
Produção
Produtor de PANCs há 14 anos, Flávio Cerratense, 40 anos, utiliza o sistema agroflorestal para garantir a segurança do solo. "É simples e mescla a plantação de espécies rasteiras com outros tipos, como árvores e trepadeiras, como a baunilha do Cerrado. As PANCs são fundamentais para esse sistema. O caxi, por exemplo, trata o solo para que ele receba outras plantas", detalha. "Elas se adaptam muito bem a qualquer tipo de solo, conseguem recuperar um espaço danificado sem precisar de muita adubação ou de produtos químicos", acrescenta.
Em um momento de reestruturação de vida, Wagner Ribeiro, 43, conheceu as PANCs. Em 2009, chegou a Brasília procurando uma perspectiva profissional melhor do que a que conhecia no Nordeste. Com experiência somente em agricultura, não conseguiu trabalho e se viu obrigado a ficar ao relento. "Foi uma fase muito difícil, fiquei um ano morando nas ruas. O que me salvou foi conhecer o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que me apresentou a essas plantas e me ensinou a produzi-las", relembra.
Wagner cultiva PANCs em cinco hectares, perto da Bacia do Descoberto, em Brazlândia. Ele comercializa na Feira Agroecológica da Ponta Norte, na 216 Norte. O produtor observa que os consumidores estão procurando cada vez mais esses itens. "Há mercado. As pessoas que conhecem costumam comentar com os amigos. Aqui mesmo, as pessoas sempre vêm para procurar o ora-pro-nóbis, o peixinho da horta, o caxi, o maracujá do Cerrado e outras que a gente produz", conta.
Na feira, é fácil encontrar gente que vai unicamente para procurar PANCs. É o caso de Vitória Alexandre, 26. Ela começou a consumi-las há cinco anos, especialmente taioba e maracuja do Cerrado. "Minha prima me falou sobre essas plantas, participei de alguns mutirões e fui pesquisar mais. O fato de ser um alimento mais saudável, orgânico e que ainda ajuda na recuperação do solo me atraiu bastante", ressalta.
Lara Dias, 44, também usa para compor sua alimentação. "Eu comecei com o ora-pro-nóbis, que tinha no quintal da minha mãe. Após virar vegetariana, comecei a consumir ainda mais, como a taioba e a bertalha", comentou. "Acredito que elas tragam um benefício ainda maior para o nosso organismo. Até o sabor é diferente, sinto muito mais no paladar e sem precisar temperar tanto", completa.
Mundo de sabores
A chef Lurdinha Simas conheceu as PANCs em 2007, durante um congresso na Universidade de Brasília (UnB). "Conheci o conceito do professor Valdely Kinupp e, desde então, venho introduzindo nos meus cardápios. Essas plantas possuem um potencial imenso, mas não são utilizadas", assinala, referindo-se ao biólogo que, ao lado do pesquisador Harri Lorenzi, criou o termo PANC.
Utilizando essas plantas, Lurdinha reúne muito sabor e cultura tradicional em seus pratos. As mais utilizadas por Lurdinha podem ser cultivadas em qualquer lugar. Ela cita algumas que considera fundamentais. "Ora-pro-nóbis, chaya e taioba podem ser consumidas de maneira muito fácil e ainda podem substituir alimentos convencionais. Se o agricultor estiver acostumado a plantar couve, pode substituí-la por bredo ou chaia", explica.
Como demonstração, ela ensina receitas, para compor uma refeição completa, que podem ser feitas por qualquer pessoa (veja quadro). O prato principal, arroz com sara-tudo, chama a atenção por sua coloração rosa. Utilizando a água do cozimento das folhas e flores da planta, o arroz fica levemente adocicado.
A omelete com ora-pro-nóbis entrega uma boa quantidade de proteínas, fibras e vitaminas. Como acompanhamento, as folhas desidratas de chaia roubam a cena, sendo muito crocantes e mais saudáveis do que as tradicionais batatas fritas. Como sobremesa, a chef sugere um creme de ora-pro-nóbis com abacate e abacaxi, com um toque de limão.
Delícias não convencionais
» Arroz com sara-tudo: cozinhar talos, folhas e flores de sara-tudo por cerca de 25 minutos. Após esse tempo, deixar reservado na própria a por mais cinco minutos para extrair toda a coloração. Iniciar o preparo do arroz da forma convencional, utilizando a água de sara-tudo sem os resíduos sólidos para cozinhá-lo.
» Chá de sara-tudo: a água da cocção da planta pode ser consumida como um chá.
» Folhas de chaya desidratadas: pincelar os dois lados com azeite de oliva e temperar a gosto. Levar ao forno em temperatura média (170°C), por 15 minutos. Depois disso, está pronta para o consumo.
» Omelete com ora-pro-nóbis: adicionar três ovos na frigideira untada com óleo ou manteiga. Após um minuto, adicionar folhas de ora-pro-nóbis cortadas. Mexer por cerca de três minutos e servir.
» Ora-pro-nóbis refogada: lavar e cortar as folhas em tiras. Refogar entre três e cinco minutos na frigideira quente.
» Sobremesa: creme de abacate e abacaxi com ora-pro-nóbis: em um liquidificador, adicionar 15g de abacate, duas rodelas de abacaxi, 90ml de água de coco e uma pitada de limão. Bater até chegar a uma consistência cremosa.
*Estagiário sob a supervisão de Eduardo Pinho
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