Empreendedorismo

Empreendedorismo social floresce e alcança comunidades no Brasil

Negócios de impacto social que aliam sustentabilidade econômica e propósito ajudam na recuperação de comunidades devastadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul

A agricultora Patrícia da Silva Ramos, de 32 anos, do assentamento Polônio de Carvalho, em Guaíba, com o marido, Nelson, e o filho, Vagner -  (crédito: Arquivo pessoal)
A agricultora Patrícia da Silva Ramos, de 32 anos, do assentamento Polônio de Carvalho, em Guaíba, com o marido, Nelson, e o filho, Vagner - (crédito: Arquivo pessoal)

Em um país de contrastes tão marcantes como o Brasil, onde de um lado há excedentes e de outro, a fome, o empreendedorismo social surge como um campo fértil de inovação e esperança. Mais que uma tendência, ele se consolida como força propulsora de transformação econômica, especialmente nas comunidades historicamente esquecidas.

De acordo com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o número de negócios de impacto social cresceu mais de 22% entre 2020 e 2023. Por trás dos números, há histórias de resistência, afeto e reconstrução. O empreendedorismo social alia sustentabilidade econômica e propósito, e vai muito além do lucro: ele cria sentidos para o verbo "empreender" e desenha soluções onde antes só se via carência.

O sociólogo e economista Vinícius do Carmo explica que esse modelo rompe com a lógica tradicional de mercado: "O empreendedorismo social desafia o lucro pelo lucro e aposta na geração de valor compartilhado. Mas, para florescer plenamente, precisa de estímulo: linhas de crédito específicas, políticas públicas inteligentes e incubadoras capazes de acolher essas iniciativas e impulsioná-las."

E, assim, novas cadeias produtivas mais justas ganham espaço, enfrentando gargalos históricos: insegurança alimentar, falta de o à moradia digna, ausência de saneamento básico e oportunidades restritas de educação e renda. "São negócios que não apenas transformam o ambiente onde surgem, mas também a maneira como a economia pode funcionar: com mais humanidade, mais inclusão e menos desigualdade", pontua Vinícius.

Semeando esperança

A história de Sabrina Meireles Soares, 38 anos, agricultora da reforma agrária e integrante da cooperativa Coafchar, em Charqueadas (RS), ilustra como o empreendedorismo social pode significar mais do que uma retomada econômica: pode ser um reencontro com a própria dignidade. Após a enchente de maio de 2024, a água devastou o que anos de safra haviam construído: a terra, as plantações, as ferramentas e o ânimo. "Foi tudo embora. Ficamos sem chão, sem coragem, sem saber para onde olhar", relembra Sabrina, com dor e gratidão.

O recomeço somente foi possível graças ao Instituto Fome de Tudo, que se fez ponte entre a solidariedade e a ação prática: entregou insumos, ofereceu assistência técnica e ajudou a reconectar agricultores com sua produção e sua comunidade. "Eles nos deram de volta a possibilidade de sonhar. Ajudaram quem estava no campo e quem estava na cidade ando fome. Isso é empreendedorismo social: uma mão que levanta, outra que alimenta", emociona-se Sabrina.

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O Instituto atuou em parceria com a Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), reerguendo mais de 250 famílias produtoras, que hoje voltam a abastecer cestas de alimentos distribuídas a quem mais precisa. O impacto é circular, como ressalta Marcelo Scafuro, vice-presidente da ONG: "Empreendedorismo social é uma via de mão dupla: gera renda para quem produz e alívio para quem consome. Mas ainda faltam políticas públicas estruturantes para que esses modelos saiam do campo da exceção e se tornem regra".

Patrícia da Silva Ramos, 32, agricultora do assentamento Polônio de Carvalho, em Guaíba, também foi tocada pela força dessa rede de apoio. "Quando perdemos tudo, ficamos paralisados. Não sabíamos nem por onde começar. O pessoal do Fome de Tudo trouxe não só o adubo, as mudas, mas também a confiança. Hoje, voltamos a plantar e colher", conta, com brilho nos olhos.

Além das perdas físicas, ficou o trauma. "Depois de uma enchente, a gente fica meio traumatizado. Não sabia se a terra estava contaminada, se ainda dava para plantar. Essa ajuda foi tremenda, não só para mim, mas para todos os agricultores da região", afirma Patrícia. Ela reforça o que é consenso entre os que vivenciam o empreendedorismo social: "O governo deveria apoiar mais iniciativas como essa. Muitas vezes, a gente aqui na roça se sente esquecida. Mas essas ONGs lembram da gente, chegam quando mais precisamos".

Tecnologia que alimenta

O empreendedorismo social também tem se valido da inovação tecnológica para potencializar seu alcance. Enquanto o Brasil desperdiça, anualmente, cerca de 27 milhões de toneladas de alimentos — sendo que 80% dessas perdas ocorrem ainda na produção ou transporte —, o Instituto Fome de Tudo conecta, com precisão e agilidade, quem tem sobra a quem tem fome.

A organização criou uma tecnologia própria, descrita como um "Tinder da fome": supermercados e produtores registram seus excedentes, enquanto entidades cadastradas am esses alimentos, com toda a logística e segurança rastreadas por um aplicativo. O sistema já viabilizou a entrega de mais de 9 milhões de refeições, impactando cerca de 300 mil pessoas no Brasil. "Não é preciso produzir mais alimentos para acabar com a fome. É preciso produzir menos desperdício", afirma Úrsula Corona, CEO do Instituto, que desde a infância usa sua voz pública — ela é atriz e apresentadora de tevê — para causas sociais.

"Sempre acreditei em construir pontes entre quem pode doar e quem precisa receber. Nosso trabalho é transformar esse elo em algo permanente e eficiente", explica a atriz e apresentadora, que está à frente do reality show Vida de merendeira, no canal por Sabor & Arte.

A atração — fruto de uma parceria entre o Centro de Excelência Contra Fome do WFP (Programa Mundial de Alimentos da ONU), o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) — valoriza profissionais que preparam a alimentação escolar de mais de 40 milhões de crianças e adolescentes todos os dias. "O trabalho dessas pessoas que atuam nas unidades escolares alcança as famílias. É preocupante pensar que muitas dessas vidas têm somente essa refeição no dia todo", observa Úrsula.

Hoje, a ONG é a única no Brasil com parceria oficial com o WFP e prepara-se para expandir seu modelo para outros países, demonstrando que o empreendedorismo social brasileiro pode ser uma referência global. A tecnologia já coleciona prêmios e validações internacionais, pela maturidade e pelo impacto que promove. Mas nem sempre é fácil chegar a esse patamar. "Ainda é comum ver boas ideias sociais morrerem na primeira tentativa, por falta de crédito ou apoio técnico", lamenta Scafuro. "É preciso que os setores público, privado e o terceiro setor caminhem juntos. Só assim o impacto será duradouro e massivo", acrescenta.

Um projeto de nação

Um estudo inédito realizado pelo Datafolha, a FGV (Fundação Getulio Vargas) e a FDC (Fundação Dom Cabral) mostra que as ações dos empreendedores sociais já alcançaram, em 20 anos, 330 milhões de pessoas no país. Ao todo, os empreendedores sociais já beneficiaram 330 milhões de pessoas, 1,5 vez a nossa população atual. Em 2023, foi mobilizado R$ 1,7 bilhão pelos empreendedores que participaram da pesquisa, o que demonstra a força do terceiro setor.

Negócios de impacto social, de acordo com o Sebrae, são iniciativas financeiramente sustentáveis, formalizadas por pequenos negócios, com viés econômico e caráter social e/ou ambiental, que contribuam para transformar a realidade das populações menos favorecidas e fomentam o desenvolvimento da economia nacional.

O empreendedorismo social, ao fincar raízes nas comunidades e erguer novas formas de produção e distribuição, não apenas movimenta a economia, mas redefine suas prioridades. Torna-se uma resposta concreta e criativa às mazelas que políticas públicas tardam ou falham em resolver.

O Brasil, entre cheias e secas, fome e abundância, segue sendo um terreno fértil para quem acredita que empreender é, antes de tudo, um ato de cuidado. Em tempos de crise climática, desigualdades acirradas e insegurança alimentar crescente, o empreendedorismo social mostra que há alternativas. Que é possível fazer economia com afeto, gerar lucro com propósito e transformar vidas com inovação. Como diz Sabrina, olhando sua nova plantação: "A gente perdeu tudo, mas não perdeu a vontade. E agora, graças a esse apoio, estamos de pé de novo".

postado em 02/06/2025 04:00 / atualizado em 02/06/2025 06:43
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