
JORGE JABER, Psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), membro da Academia Nacional de Medicina
Além de antecipar tendências e apontar mudanças na sociedade, a arte tem o poder de influenciar nossa visão sobre o mundo e, portanto, nosso comportamento. Nesse sentido, a nova versão da novela Vale Tudo vem prestando um serviço inestimável ao abordar, de forma realista e equilibrada, a questão da dependência química, trazida com sensibilidade à luz pela personagem Heleninha Roitman, uma artista plástica que enfrenta severos problemas com bebida. Entre eles, o preconceito em relação aos dependentes, ainda mais cruel e impactante no caso das mulheres.
A inevitável comparação entre a Heleninha de 1988, criada por Gilberto Braga e imortalizada por Renata Sorrah, e a atual, concebida por Manuela Dias e interpretada por Paolla Oliveira, levará a uma pergunta importante: continuamos, como na época da novela original, encarando as pessoas com dependência — não somente química, mas também, por exemplo, de jogos — como de caráter fraco, incapazes de controlar os próprios atos e indiferentes à dor da família e amigos diante de seu descontrole ou amos a tratá-las com a atenção e o carinho que merecem?
Esse olhar estereotipado, fruto da ignorância e desinformação, infelizmente persiste em diversos setores da sociedade. Uma visão tacanha, impermeável à ciência e que provoca ainda mais danos à já frágil saúde física e mental do dependente e, não raro, até daqueles que tentam ajudá-lo — normalmente, mães e esposas. Um quadro, é preciso reconhecer, que a primeira Vale Tudo ajudou a modificar, inclusive, estimulando a busca por apoio. O grupo Alcoólicos Anônimos, por exemplo, registrou um aumento expressivo de frequentadores em suas reuniões naquele período.
Quase quatro décadas depois, é possível que o fenômeno se repita, o que seria uma bela notícia diante dos números relativos ao tema. Mais de um quarto dos adultos brasileiros, por exemplo, bebe ao menos uma vez por semana, 18% deles de forma abusiva, segundo o Observatório da Saúde Pública. Um hábito perigoso e caro: o consumo de álcool provocou cerca de 105 mil mortes — 12 por hora — no Brasil em 2019, num custo de quase R$ 19 bilhões ao país entre despesas médicas, indenizações e impactos econômicos, de acordo com a Fiocruz. Um prejuízo compartilhado por todos, inclusive, pelos abstêmios.
Essas e outras estatísticas trazem um detalhe preocupante: há cada vez mais mulheres bebendo no país. Entre 2010 e 2020, o consumo abusivo entre elas cresceu mais de 4% ao ano, e o número de mortes aumentou 7,5%. Essas altas se deram, em sua maioria, na faixa entre 18 e 34 anos, o que indica tanto um reflexo das sempre bem-vindas mudanças no estilo de vida e padrões de comportamento femininos quanto um tema para reflexão: a prevalência do alcoolismo entre as jovens seria mais um fruto da constante pressão — dentro e fora de casa — com que elas convivem diariamente?
Essa é uma das questões que a nova Vale Tudo pode ajudar a discutir. Nos 37 anos que separam as duas obras, houve muitos avanços na área. Embora ainda insuficiente, o o ao atendimento médico para a dependência aumentou, inclusive, na rede pública, e os próprios tratamentos evoluíram. A ênfase, hoje, é em programas que integram psicoterapia, medicamentos, grupos de apoio e acompanhamento profissional, não mais na abstinência forçada e terapias de cunho unicamente religioso. Os caminhos para a plena recuperação do portador de dependência, portanto, estão mais íveis.
O preconceito, porém, continua a assombrar os doentes — sim, trata-se de uma doença, reconhecida como tal pela própria Organização Mundial da Saúde —, muitas vezes, impedindo ou retardando o diagnóstico e a busca por ajuda médica. Um cenário, ao contrário das novelas, nem sempre com final feliz, e que personagens como a carismática Heleninha podem alterar.